terça-feira, 3 de maio de 2016

RESERVA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA EM FACE À SINDICABILIDADE DOS TRIBUNAIS

Este texto tem como objectivo justificar a consagração da margem de livre decisão conferida à Administração Pública (AP) no nosso Ordenamento Jurídico (OJ), pretendendo assim, facilitar posteriormente o estudo da margem de livre decisão nas suas diferentes modalidades.
      Já sabemos, que em termos sintéticos, a margem de livre decisão desdobra-se em discricionariedade e margem de livre apreciação ou conceitos verdadeiramente indeterminados, referir-nos-emos à margem de livre decisão em sentido amplo, abrangendo ambas as modalidades.
Podemos afirmar, como regra, que a margem de livre decisão conferida à AP no nosso OJ, não é passível de controlo por parte dos juízes.
Contudo, esta afirmação requer concretizações, uma vez que existem várias modalidades de margem de livre decisão, que suscitam diferentes graus de controlo por parte dos Tribunais.
Isto leva a que seja essencial, quando nos deparamos com uma norma, diferenciar a parte que é discricionária e a parte que é vinculada.
      Convém relembrar, que um dos valores basilares que formatam o nosso OJ, é o Estado de Direito, consubstanciando-se na separação de poderes e na sujeição dos poderes públicos à lei, assim como o controlo do seu exercício pelos Tribunais, garantindo os direitos fundamentais dos cidadãos.
A actividade administrativa está controlada por um sistema judicial de fiscalização da validade dos actos da actividade administrativa, sendo esta a modalidade consagrada na nossa Constituição da República Portuguesa (CRP) (268º/4/5 CRP).
Neste artigo, consagra-se o princípio da tutela jurisdicional efectiva, significando que a todos os interesses dos cidadãos, dignos de protecção legal, deve corresponder um meio de satisfação processual no respeitante à jurisdição administrativa.
O legislador ordinário, no âmbito do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, consagra igualmente esta modalidade de fiscalização da validade dos actos da AP (4º ETAF).
Deste modo, podemos dizer em termos amplos, que a margem de livre decisão da AP, consubstancia-se num espaço de reserva a favor da AP, imune à sindicabilidade pelos tribunais. Os Tribunais estão proibidos de controlar este âmbito de actuação administrativa.
A margem de livre decisão, é insusceptível de controlo judicial porque respeita ao mérito, conveniência ou oportunidade das decisões da AP, já no que toca à validade da conduta administrativa, é sempre susceptível de sindicabilidade.
Por esta razão é obsoleta a afirmação de que onde há discricionariedade por parte da AP, não há controlo judicial, e onde há controlo judicial, não há discricionariedade e sim vinculação.
Mesmo as normas que conferem margem de livre decisão, são sempre passíveis de controlo judicial, em tudo o que respeita à legalidade. Cabe diferenciar a parte desta que é vinculada (logo, sindicável) e a que não (logo não sindicável).
      Para entendermos os limites que pautam o relacionamento entre os Tribunais e AP, devemos atender a três pontos essenciais: os fundamentos da reserva da AP em face ao poder judicial, as componentes da margem de livre decisão e os limites da margem de livre decisão
No que toca aos fundamentos encontramos toda uma serie de argumentos que nos permitem explicar as razões pelas quais se concede em face ao nosso OJ, uma margem de livre decisão à AP, insindicavel pelos Tribunais. Entre elas estão fundamentalmente: o princípio da separação de poderes (2º CRP) típico de um Estado de Direito como o nosso, o controlo pelos Tribunais da validade da actividade administrativa (268º CRP), a falta de aptidão dos Tribunais para exercer outro controlo que não este, o princípio democrático, responsabilização da AP pelas suas decisões, vontade do legislador
·    e as vantagens do administrado.
      O princípio da separação de poderes traduz a ideia de que os poderes públicos têm um núcleo essencial intocável pelos outros poderes públicos, o mesmo se aplica a AP e à margem de livre decisão.
O nosso Sistema Jurídico (SJ) defende que cada função estadual, tem um núcleo de poderes não susceptível de intromissões de outros poderes, mas que podem ser limitados por eles, dentro dos limites legalmente previstos.
Isto significa que o Tribunal poderá sempre, mesmo na margem de livre decisão da AP, verificar a periferia de legalidade do acto, mas não o mérito, oportunidade ou conveniência da mesma decisão.
Nisto se traduz o sistema de freios e contrapesos que vigora no nosso OJ, que se consubstancia no domínio da actividade administrativa, em procurar um equilíbrio entre a separação de poderes -que permite que a AP desenvolva com certa independência a tarefa que a lei lhe confere e que só ela pode realizar convenientemente- e a garantia do controlo do exercício dos poderes públicos pelos Tribunais, no que toca à legalidade.
Se é verdade que o controlo judicial da actividade da AP limita o princípio da separação e poderes, também é verdade que o princípio da separação de poderes limita o controlo judicial da AP (limita-se à esfera da legalidade e não do mérito).
Se se descurasse o princípio da separação de poderes e se permitisse que os Tribunais se pronunciassem sobre matérias que integram o cerne da competência da AP, estar-se-ia a transformar o juiz em administrador, subvertendo toda a lógica e os valores do nosso sistema, assim como o equilíbrio entre os poderes e princípios que se tem procurado manter.
E não só, pois os Tribunais perderiam o seu atributo da independência se pudessem tomar decisões baseadas numa margem de livre decisão de acordo com os interesses públicos.
A função jurisdicional é a aplicação da lei de acordo com a metodologia jurídica, enquanto que entre as funções da AP, está a concretização da margem de livre decisão no caso concreto, da forma mais adequada, são métodos diferentes de proceder à aplicação do direito.
São duas funções diferentes e que exigem independência.
Em soma, os Tribunais devem fiscalizar a actividade da AP no que toca a legalidade, sob pena de denegação da justiça, mas está-lhes vedado a intromissão nas decisões administrativas tomadas ao abrigo da margem de livre decisão, sob pena de usurpação de poderes da AP.
Os valores em causa que devem ser contrabalançados são legalidade/mérito e separação de poderes/controlo judicial.
     Quanto ao controlo da actividade administrativa, já sabemos que o controlo pelos Tribunais da AP, limita-se à legalidade dos actos, sendo este o resultado do equilíbrio entre o controlo judicial da validade dos actos administrativos, e a separação de poderes.
Não é conveniente que o Tribunal substitua um juízo valorativo da AP por uma decisão sua, tendo em conta os procedimentos aplicados em cada uma destas funções.
A AP está equipada com mecanismos mais aptos, (p.e tem mais informação sobre o caso concreto para decidir) e a margem de livre decisão implica um juízo prognose (um raciocínio que envolve escolhas entre varias hipóteses de desenvolvimento futuro, com base em parâmetros extrajurídicos, situados no campo do mérito, oportunidade ou conveniência da decisão).
Para além disto, a intromissão judicial nas decisões tomadas pela AP, levariam ao surgimento de uma dupla AP, com o tratamento do mérito em duas funções estaduais.
Assim sendo, o controlo judicial sobre a actividade administrativa só pode incidir sobre a legalidade e não sobre o mérito das decisões, pois isto já integra o cerne da função administrativa, para a qual a AP se encontra estritamente vocacionada.
Outro argumento a favor disto, é que no nosso sistema vigora a regra da livre revogabilidade dos actos administrativos (169º/1 CPA), diz-se então que uma escolha de mérito, deve poder ser revogada ou substituída para que o interesse público, em constante mudança, possa ser satisfeito da maneira mais adequada, pelo contrario, para segurança do sistema jurídico, as sentenças judiciais quando ganham força de caso julgado, já não podem ser revogadas.
Isto significaria que o alargamento dos poderes do Tribunal aos actos praticados ao abrigo da margem de livre decisão da AP, ganhariam força de caso julgado, o que não parece adequado, atendendo à evolução constante das necessidades colectivas.
A margem de livre decisão, não é totalmente livre, pois pode ser sempre controlada pelos Tribunais, em todos os aspectos que digam respeito à legalidade, e já não aqueles que digam respeito ao mérito, cabe então destrinçar estes aspectos numa norma.
      Outro argumento utilizado pelo STA, que de resto, tivemos ocasião de ver criticado no cometário de Sérvulo Correia ao acórdão do STA de 17/01/2007, é a impossibilidade do controlo contencioso quando está em causa uma margem de livre apreciação.
Este argumento foi de resto utilizado por muita doutrina, para defender que o Tribunal não era competente para sindicar a margem de livre apreciação, uma vez que a sua função é lidar com técnicas jurídicas, estando despreparados para tomar decisões que envolvam juízos técnicos e de valoração, que apelam à experiência nesta função, e que o Tribunal não tem.
Contudo, apesar de concordar com a solução, Sérvulo Correia não concorda com os argumentos prestados, porque ao afirmá-lo, estar-se-ia a dizer que os STA não julgam os actos praticadas ao abrigo da margem de livre apreciação da AP, por falta de conhecimentos extrajurídicos necessários, e isto corresponderia a uma negação da justiça, garantida como dissemos pela nossa Constituição. Convém lembrar que os Tribunais estão possibilitados por lei de recorrer a peritos, justamente para elucidação acerca de matérias que envolvam conhecimentos técnicos em áreas específicas.
Além disto, os Tribunais, sempre podem julgar a margem de livre apreciação, em casos de erro manifesto, através do princípio da proporcionalidade na vertente da adequação.
Por outro lado, o Tribunal pode, mesmo dentro da margem de livre apreciação, controlar toda a orla de legalidade.
Trata-se, portanto, de uma dificuldade processual e não de uma verdadeira impossibilidade, em relação a estes aspectos que exigem aferição de conceitos técnicos especializados que extravasam o âmbito da técnica legislativa.
      Podemos ainda justificar a insindicabilidade judicial da margem e livre decisão da AP, invocando a menor aptidão dos Tribunais para tomar decisões deste tipo, em comparação com a AP, isto por uma questão procedimental sobre tudo. As decisões judicias provém de regras de processo diferentes das normas de procedimento administrativo.
A AP dispõe de instrumentos variados, informação diversificada e um procedimento no seu todo mais apto para exercer este poder que lhe foi conferido.
Pelo contrário, os Tribunais estão feitos para aplicar a lei de modo diverso da AP, limitam-se a aplicar a lei com objectividade, a AP está melhor preparada para tomar as decisões de forma mais dinâmica e adequada à prossecução do interesse público.  Entre outras razões porque a AP, que esta mais próxima dos cidadãos e esta vinculada pelo princípio da igualdade (6º CPA). Diferentemente, nada vincula o juiz a proferir a mesma sentença judicial anterior, em casos semelhantes.
Assim sendo, podemos concluir que a AP esta mais apta a tomar decisões que abranjam juízos de mérito, ao abrigo da margem de livre decisão que lhe foi conferido.
      Para além disto, é de não esquecer que a AP esta provida de uma legitimidade democrática e de responsabilização suas pelas decisões, contrariamente ao poder judicial, não eleito democraticamente nem responsável pelas suas decisões.
Contudo, podemos dizer que os Tribunais são providos de uma legitimidade institucional, porque são meros aplicadores do direito.
Assim sendo, embora a AP tenha maior legitimidade democrática, o Tribunal esta dotado de legitimidade institucional, o que o legitima a controlar aquela.
Este argumento sai reforçado pelo facto da AP responder politicamente pelas suas decisões, já o juiz a nada disto se sujeita.
      É bom de ver que o legislador pretendeu conferir à AP uma margem de livre decisão, por achar que estaria mais apta a prosseguir o interesse público, e isto esta de acordo com o quadro da CRP (268º/4) que garante o controlo judicial da legalidade -e não do mérito- das decisões da AP.
Para além disto, ao legislador é-lhe impossível prever taxativamente todas as situações que poderiam vir a surgir no dia-a-dia, o que também sustenta esta margem conferia à AP.
      Convém não esquecer que o próprio administrado tem vantagens em que o poder judicial não controle os actos praticados pela AP ao abrigo da margem de livre decisão, isto porque a substituição de uma decisão da AP aplicando o procedimento apto e ponderando todos os factores relevantes, por uma decisão do Tribunal que não tem a mesma técnica procedimental, implicaria uma perda de qualidade da decisão; o AP tem uma visão mais abrangente de todos os interesses em causa e todas as decisões presentes e passadas, o que não acontece, no âmbito dos Tribunais; não se justifica conferir natureza de caso julgado a uma decisão de mérito que implica juízos extra jurídicos, é mais flexível conferir esse poder à AP que goza de uma estrutura hierárquica e responsável pelas suas decisões e dos meios para tomar essa decisão. A própria estrutura da AP mune o particular de inúmeras vias de reclamação da decisão quando esta se reporta ao mérito da decisão e não à validade (v.g reclamação, recurso hierárquico...).
      Concluindo, encontramos inúmeras razões que justificam que a margem de livre decisão da AP, esteja excluída do controlo judicial.
Podemos afirmar que a margem de livre decisão, isenta de controlo judicial em tudo o que não respeite à legalidade, está de acordo com o princípio da separação de poderes e respeita a garantia constitucional do controlo judicial da actividade da AP, no que toca à validade.
Ao contrário do que possa levar a pensar, margem de livre decisão não é um poder incontrolado da AP, desprovido de juridicidade, pelo contrario, é simplesmente um modo mais apto e adequado de aplicar o direito, tendo em conta a evolução constante do interesse público, e as inúmeras situações de vida que podem surgir.
Não deixa de ser uma forma de aplicar o direito, não deixa de ser uma decisão jurídica, é simplesmente um método diferente de aplicação do direito que garante a prossecução do interesse público.

Sofia Coronel (25762). 2 TAN. Subturma 1.

BIBILIOGRAFIA
  • A discricionariedade administrativa e a competência (sobre a função administrativa) do Provedor de Justiça
  • Bernardo Diniz de Ayala ``o (défice de) controlo judicial da margem de livre decisão administrativa´´. Lex-edições jurídicas- Editora.
  • Conceitos jurídicos indeterminados e âmbito do controlo jurisdicional. Acórdao do STA 1ª secção de 17.1.2007.
  • Direito Administrativo Geral - Tomo I - Introdução e Princípios Fundamentais. André Salgado e Marcelo Rebelo de Sousa. Dom Quixote- Editora

WEBGRAFIA


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