Este texto tem como objectivo justificar a consagração
da margem de livre decisão conferida à Administração Pública (AP) no nosso
Ordenamento Jurídico (OJ), pretendendo assim, facilitar posteriormente o estudo da
margem de livre decisão nas suas diferentes modalidades.
Já sabemos, que em termos sintéticos, a margem de
livre decisão desdobra-se em discricionariedade
e margem de livre apreciação ou
conceitos verdadeiramente indeterminados, referir-nos-emos à margem de livre
decisão em sentido amplo, abrangendo ambas as modalidades.
Podemos afirmar, como regra, que a margem de livre
decisão conferida à AP no nosso OJ, não é passível de controlo por parte dos
juízes.
Contudo, esta afirmação requer concretizações, uma vez
que existem várias modalidades de margem de livre decisão, que suscitam
diferentes graus de controlo por parte dos Tribunais.
Isto leva a que seja essencial, quando nos deparamos
com uma norma, diferenciar a parte que é discricionária e a parte que é
vinculada.
Convém relembrar, que um dos valores basilares que
formatam o nosso OJ, é o Estado de Direito, consubstanciando-se na separação de
poderes e na sujeição dos poderes públicos à lei, assim como o controlo do seu
exercício pelos Tribunais, garantindo os direitos fundamentais dos cidadãos.
A actividade administrativa está controlada por um sistema
judicial de fiscalização da validade dos actos da actividade
administrativa, sendo esta a modalidade consagrada na nossa Constituição da República
Portuguesa (CRP) (268º/4/5 CRP).
Neste artigo, consagra-se o princípio da tutela jurisdicional
efectiva, significando que a todos os interesses dos cidadãos, dignos
de protecção legal, deve corresponder um meio de satisfação processual no respeitante
à jurisdição administrativa.
O legislador ordinário, no âmbito do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais, consagra igualmente esta modalidade de fiscalização
da validade dos actos da AP (4º ETAF).
Deste modo, podemos dizer em termos amplos, que a
margem de livre decisão da AP, consubstancia-se num espaço de reserva a favor
da AP, imune à sindicabilidade pelos tribunais. Os Tribunais estão proibidos de
controlar este âmbito de actuação administrativa.
A margem de livre decisão, é insusceptível de controlo
judicial porque respeita ao mérito, conveniência ou oportunidade das decisões
da AP, já no que toca à validade da conduta administrativa, é sempre susceptível
de sindicabilidade.
Por esta razão é obsoleta a afirmação de que onde há
discricionariedade por parte da AP, não há controlo judicial, e onde há
controlo judicial, não há discricionariedade e sim vinculação.
Mesmo as normas que conferem margem de livre decisão,
são sempre passíveis de controlo judicial, em tudo o que respeita à legalidade.
Cabe diferenciar a parte desta que é vinculada (logo, sindicável) e a que não
(logo não sindicável).
Para entendermos os limites que pautam o
relacionamento entre os Tribunais e AP, devemos atender a três pontos
essenciais: os fundamentos da reserva da AP em face ao poder judicial, as componentes
da margem de livre decisão e os limites da margem de livre decisão
No que toca aos fundamentos encontramos toda uma serie de argumentos que nos
permitem explicar as razões pelas quais se concede em face ao nosso OJ, uma
margem de livre decisão à AP, insindicavel pelos Tribunais. Entre elas estão
fundamentalmente: o princípio da separação de poderes (2º CRP)
típico de um Estado de Direito como o nosso, o controlo pelos Tribunais da validade da
actividade administrativa (268º CRP), a falta de aptidão dos Tribunais para
exercer outro controlo que não este, o princípio democrático, responsabilização
da AP pelas suas decisões, vontade do legislador
· e as vantagens do administrado.
O princípio da separação de poderes traduz
a ideia de que os poderes públicos têm um núcleo essencial intocável pelos outros
poderes públicos, o mesmo se aplica a AP e à margem de livre decisão.
O nosso Sistema Jurídico (SJ) defende que cada
função estadual, tem um núcleo de poderes não susceptível de intromissões de
outros poderes, mas que podem ser limitados por eles, dentro dos limites
legalmente previstos.
Isto significa que o Tribunal poderá sempre, mesmo na
margem de livre decisão da AP, verificar a periferia de legalidade do acto, mas
não o mérito, oportunidade ou conveniência da mesma decisão.
Nisto se traduz o sistema de freios e contrapesos que
vigora no nosso OJ, que se consubstancia no domínio da actividade
administrativa, em procurar um equilíbrio entre a separação de poderes -que permite
que a AP desenvolva com certa independência a tarefa que a lei lhe confere e
que só ela pode realizar convenientemente- e a garantia do controlo do
exercício dos poderes públicos pelos Tribunais, no que toca à legalidade.
Se é verdade que o controlo judicial da actividade da
AP limita o princípio da separação e poderes, também é verdade que o princípio
da separação de poderes limita o controlo judicial da AP (limita-se à esfera da
legalidade e não do mérito).
Se se descurasse o princípio da separação de poderes e
se permitisse que os Tribunais se pronunciassem sobre matérias que integram o
cerne da competência da AP, estar-se-ia a transformar o juiz em administrador, subvertendo
toda a lógica e os valores do nosso sistema, assim como o equilíbrio entre os
poderes e princípios que se tem procurado manter.
E não só, pois os Tribunais perderiam o seu atributo
da independência se pudessem tomar decisões baseadas numa margem de livre
decisão de acordo com os interesses públicos.
A função jurisdicional é a aplicação da lei de acordo
com a metodologia jurídica, enquanto que entre as funções da AP, está a
concretização da margem de livre decisão no caso concreto, da forma mais
adequada, são métodos diferentes de proceder à aplicação do direito.
São duas funções diferentes e que exigem
independência.
Em soma, os Tribunais devem fiscalizar a actividade da
AP no que toca a legalidade, sob pena de denegação
da justiça, mas está-lhes vedado a intromissão nas decisões administrativas
tomadas ao abrigo da margem de livre decisão, sob pena de usurpação de poderes da AP.
Os valores em causa que devem ser contrabalançados são
legalidade/mérito e separação de poderes/controlo judicial.
Quanto ao controlo da actividade administrativa,
já sabemos que o controlo pelos Tribunais da AP, limita-se à legalidade dos
actos, sendo este o resultado do equilíbrio entre o controlo judicial da validade dos actos administrativos, e a separação de poderes.
Não é conveniente que o Tribunal substitua um juízo
valorativo da AP por uma decisão sua, tendo em conta os procedimentos aplicados
em cada uma destas funções.
A AP está equipada com mecanismos mais aptos, (p.e tem
mais informação sobre o caso concreto para decidir) e a margem de livre decisão
implica um juízo prognose (um raciocínio
que envolve escolhas entre varias hipóteses de desenvolvimento futuro, com base
em parâmetros extrajurídicos, situados no campo do mérito, oportunidade ou
conveniência da decisão).
Para além disto, a intromissão judicial nas decisões
tomadas pela AP, levariam ao surgimento
de uma dupla AP, com o tratamento do mérito em duas funções estaduais.
Assim sendo, o controlo judicial sobre a actividade
administrativa só pode incidir sobre a legalidade e não sobre o mérito das
decisões, pois isto já integra o cerne da função administrativa, para a qual a
AP se encontra estritamente vocacionada.
Outro argumento a favor disto, é que no nosso sistema
vigora a regra da livre revogabilidade
dos actos administrativos (169º/1 CPA), diz-se então que uma escolha de mérito,
deve poder ser revogada ou substituída para que o interesse público, em
constante mudança, possa ser satisfeito da maneira mais adequada, pelo
contrario, para segurança do sistema jurídico, as sentenças judiciais quando
ganham força de caso julgado, já não podem ser revogadas.
Isto significaria que o alargamento dos poderes do Tribunal
aos actos praticados ao abrigo da margem de livre decisão da AP, ganhariam força de caso julgado, o que não parece adequado,
atendendo à evolução constante das necessidades colectivas.
A margem de livre decisão, não é totalmente livre,
pois pode ser sempre controlada pelos Tribunais, em todos os aspectos que digam
respeito à legalidade, e já não aqueles que digam respeito ao mérito, cabe
então destrinçar estes aspectos numa norma.
Outro argumento utilizado pelo STA, que de resto,
tivemos ocasião de ver criticado no cometário de Sérvulo Correia ao acórdão do
STA de 17/01/2007, é a impossibilidade do controlo contencioso
quando está em causa uma margem de livre apreciação.
Este argumento foi de resto utilizado por muita
doutrina, para defender que o Tribunal não era competente para sindicar a
margem de livre apreciação, uma vez que a sua função é lidar com técnicas jurídicas,
estando despreparados para tomar decisões que envolvam juízos técnicos e de valoração, que apelam à experiência nesta
função, e que o Tribunal não tem.
Contudo, apesar de concordar com a solução, Sérvulo
Correia não concorda com os argumentos prestados, porque ao afirmá-lo, estar-se-ia
a dizer que os STA não julgam os actos praticadas ao abrigo da margem de livre
apreciação da AP, por falta de conhecimentos
extrajurídicos necessários, e isto corresponderia a uma negação da justiça, garantida como
dissemos pela nossa Constituição. Convém lembrar que os Tribunais estão possibilitados
por lei de recorrer a peritos, justamente para elucidação acerca de matérias
que envolvam conhecimentos técnicos em áreas específicas.
Além disto, os Tribunais, sempre podem julgar a margem de livre apreciação, em casos de erro manifesto, através do princípio da proporcionalidade na vertente
da adequação.
Por outro lado, o Tribunal pode, mesmo dentro da
margem de livre apreciação, controlar toda a orla de legalidade.
Trata-se, portanto, de uma dificuldade processual e
não de uma verdadeira impossibilidade, em relação a estes aspectos que exigem aferição
de conceitos técnicos especializados que extravasam o âmbito da técnica legislativa.
Podemos ainda justificar a insindicabilidade
judicial da margem e livre decisão da AP, invocando a menor aptidão dos Tribunais para tomar
decisões deste tipo, em comparação com a AP, isto por uma questão procedimental
sobre tudo. As decisões judicias provém de regras de processo diferentes das
normas de procedimento administrativo.
A AP dispõe de instrumentos variados, informação diversificada
e um procedimento no seu todo mais apto para exercer este poder que lhe foi
conferido.
Pelo contrário, os Tribunais estão feitos para aplicar
a lei de modo diverso da AP, limitam-se a aplicar a lei com objectividade, a AP
está melhor preparada para tomar as decisões de forma mais dinâmica e adequada
à prossecução do interesse público. Entre outras razões porque a AP, que esta mais
próxima dos cidadãos e esta vinculada pelo princípio da igualdade (6º CPA). Diferentemente,
nada vincula o juiz a proferir a mesma sentença judicial anterior, em casos
semelhantes.
Assim sendo, podemos concluir que a AP esta mais apta
a tomar decisões que abranjam juízos de mérito, ao abrigo da margem de livre
decisão que lhe foi conferido.
Para além disto, é de não esquecer que a AP
esta provida de uma legitimidade democrática e de responsabilização suas pelas
decisões, contrariamente ao poder judicial, não eleito democraticamente
nem responsável pelas suas decisões.
Contudo, podemos dizer que os Tribunais são providos
de uma legitimidade institucional, porque são meros aplicadores do direito.
Assim sendo, embora a AP tenha maior legitimidade
democrática, o Tribunal esta dotado de legitimidade institucional, o que o legitima a controlar aquela.
Este argumento sai reforçado pelo facto da AP responder
politicamente pelas suas decisões, já o juiz a nada disto se sujeita.
É bom de ver que o legislador pretendeu conferir à AP uma
margem de livre decisão, por achar que estaria mais apta a prosseguir o
interesse público, e isto esta de acordo com o quadro da CRP (268º/4) que
garante o controlo judicial da legalidade -e não do mérito- das decisões da AP.
Para além disto, ao legislador é-lhe impossível prever
taxativamente todas as situações que poderiam vir a surgir no dia-a-dia, o que
também sustenta esta margem conferia à AP.
Convém não esquecer que o próprio administrado tem
vantagens em que o poder judicial não controle os actos praticados pela AP ao
abrigo da margem de livre decisão, isto porque a substituição de uma decisão da
AP aplicando o procedimento apto e ponderando todos os factores
relevantes, por uma decisão do Tribunal que não tem a mesma técnica procedimental,
implicaria uma perda de qualidade da decisão; o AP tem uma visão mais abrangente
de todos os interesses em causa e todas as decisões presentes e passadas, o que
não acontece, no âmbito dos Tribunais; não se justifica conferir natureza de
caso julgado a uma decisão de mérito que implica juízos extra jurídicos, é mais
flexível conferir esse poder à AP que goza de uma estrutura hierárquica e
responsável pelas suas decisões e dos meios para tomar essa decisão. A própria
estrutura da AP mune o particular de inúmeras vias de reclamação da decisão
quando esta se reporta ao mérito da decisão e não à validade (v.g reclamação,
recurso hierárquico...).
Concluindo, encontramos inúmeras razões que justificam
que a margem de livre decisão da AP, esteja excluída do controlo judicial.
Podemos afirmar que a margem de livre decisão,
isenta de controlo judicial em tudo o que não respeite à legalidade, está de acordo
com o princípio da separação de poderes e respeita a garantia constitucional do
controlo judicial da actividade da AP, no que toca à validade.
Ao contrário do que possa levar a pensar, margem de
livre decisão não é um poder incontrolado da AP, desprovido de juridicidade,
pelo contrario, é simplesmente um modo mais apto e adequado de aplicar o
direito, tendo em conta a evolução constante do interesse público,
e as inúmeras situações de vida que podem surgir.
Não deixa de ser uma forma de aplicar o direito, não
deixa de ser uma decisão jurídica, é simplesmente um método diferente de aplicação do direito que garante a prossecução do interesse público.
Sofia Coronel (25762). 2 TAN. Subturma 1.
BIBILIOGRAFIA
- A discricionariedade administrativa e a competência (sobre a função administrativa) do Provedor de Justiça
- Bernardo Diniz de Ayala ``o (défice de) controlo judicial da margem de livre decisão administrativa´´. Lex-edições jurídicas- Editora.
- Conceitos jurídicos indeterminados e âmbito do controlo jurisdicional. Acórdao do STA 1ª secção de 17.1.2007.
- Direito Administrativo Geral - Tomo I - Introdução e Princípios Fundamentais. André Salgado e Marcelo Rebelo de Sousa. Dom Quixote- Editora
WEBGRAFIA
- http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/91360a67db9962f08025742600326de7?OpenDocument
- http://verbojuridico.net/ficheiros/doutrina/administrativo/naldemarlourenco_justicaadministrativa.pdf
- http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=439&tabela=leis
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