segunda-feira, 30 de maio de 2016

CONTROLO JURISDICIONAL E BOA ADMINISTRAÇÃO

De entre os fundamentos estruturantes do direito administrativo português, e em vista dos valores fundamentais que devem reger esta actividade “num Estado de Direito democrático” (cfr. Decreto-Lei n.º 4/2015, de 07.01) emergem os inerentes princípios conformadores (cfr., desde logo, os artigos 3.º a 19.º, do, referenciado, e vigente, CPA/Código do Procedimento Administrativo) e, entre eles, o da boa administração (cfr. artigo 5.º), tido este por, nesta matéria, significativa inovação (cfr. preâmbulo daquele Decreto-Lei n.º 4/2015, de 07.01), aqui se consignando que por ele, em “quadro heterogéneo”, foram integrados “os princípios constitucionais da eficiência, da aproximação dos serviços das populações e da desburocratização”.
A propósito do concretizar uma “boa administração”, e neste enquadramento, ressalta a problemática dos limites desta como eficiência enquanto referencial de possibilidade, ou não, do controlo jurisdicional da actividade administrativa, em particular quando aferida a “margem da livre decisão administrativa” (enquanto “espaço de liberdade da actuação administrativa conferido por lei” implicando “uma pelo menos parcial autodeterminação administrativa”) ao rigoroso cumprimento do princípio da legalidade, “v.g.” na medida em que se defenda que “o controlo jurisdicional carece de ultrapassar uma metodologia de controlo da margem de livre decisão que, por assentar demasiado em elementos vinculados e formais, não é já compatível com a feição actual do ordenamento jurídico” e que “o direito administrativo pede, hoje, um cálculo sensato e orientado para a justiça, quer por parte do administrador, que o faz em primeira linha, quer por parte do julgador, que o controla” - cfr. “Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo”, 2.ª edição/2015, da “AAFDL Editora”, página 205.
A equação sempre haverá que ter em conta a natureza dos actos integradores de uma “boa administração” - gerais e abstractos -, o princípio da separação de poderes por relação à margem de liberdade da administração em face do poder jurisdicional, e a avaliação do caso concreto à luz da finalidade normativa do interesse público prosseguido, sendo que, sempre, “a base jurídica da margem da livre decisão administrativa é a lei” - cfr. Sousa, Marcelo Rebelo de, e Matos, André Salgado de, “in” Direito Administrativo Geral, Tomo I, 5.ª edição, fls. 183.
Daqui resulta que, mais do que permitido, se impõe o controlo jurisdicional do teor/conteúdo útil emergente de decisão administrativa no referente à boa ou má formulação dos eventuais juízos de prognose e/ou assumir de riscos (não, em rigor, quanto à concreta decisão), e na medida em que se possam ter formulado (cfr. desde logo CPTA, artigo 71.º) “valorações próprias” do exercício (discricionário) da “função administrativa”.
É que consistindo a “margem de livre apreciação” um “espaço de liberdade da administração na apreciação de situações de facto que dizem respeito aos pressupostos das suas decisões” (“in” citado Direito Administrativo Geral, Tomo I, 5.ª edição, página 195), o concretizar, caso a caso, do princípio, estruturante, do dever da boa administração mais não parece significar do que a sua utilização no controlo jurisdicional “stricto sensu” dessa boa ou má apreciação, e sem que tal seja sinónimo de “dupla administração”.
As fronteiras do controlo jurisdicional não podem, de resto, querer significar em matéria de separação de poderes a não juridicidade do dever, enquanto eficiência, de boa administração.
A natureza deste dever jurídico tem de ser reportada à melhor solução, de entre as possíveis, para o interesse público, pelo que a sua não observância deverá, sem que se possa falar de invasão da área de mérito, poder importar invalidade do acto administrativo (e/ou, na medida em que tal se possa, com realismo técnico, e se outras soluções se apresentavam como validas alternativas, configurar, tutela preventiva, e como tal inutilizadora de efeitos previsíveis, ainda que minimamente, como potencialmente nefastos), para além, pois, de essa não observância poder ser eventual fundamento de responsabilidade disciplinar, ou de avaliação de desempenho, e/ou eventual fundamento de responsabilidade civil da administração perante terceiros, e/ou eventual fundamento de impugnação administrativa e, por aí, de revogação do acto em causa por motivo de interesse público, e/ou eventual fundamento de orientação no âmbito dos poderes de controlo por parte dos órgãos titulares (“v.g.” o Governo) de direcção, superintendência e eventual tutela de mérito sobre outros órgãos da administração.
Não se diga, de resto, que tal não é conforme à “unidade do sistema jurídico” (cfr. Código Civil, artigo 9.º), pois que: - por um lado, o princípio da boa administração como eficiência comporta clara injunção dirigida à administração, desse modo devendo funcionar com o grau de efectividade e de vínculo dos demais princípios limitadores da margem de livre decisão administrativa; - por outro lado, os critérios (alegadamente não jurídicos porque de mérito) da boa administração não relevam para, por exemplo, o acto administrativo de resolução de um contrato por incumprimento; - e, ainda, porque tal objecção não é aferida, em sede de variada tutela jurisdicional (cfr. “v.g.” CPTA, artigo 55.º, n.ºs 1, alíneas b) e e), e 2) à questão da legitimidade processual.
Impõe-se, assim, que o princípio da boa administração, em termos do controlo jurisdicional, tenha, para válida conduta administrativa, como referenciais não só a legalidade no contexto de “vício de excesso de poder”, como a verificação de todos os “vícios” de violação da lei, devendo ser o objecto desse controlo a actividade administrativa nas suas diversas formas, sob pena de o “poder público” reservar para si “parcelas cada vez mais significativas de verdadeira imunidade”, sem prejuízo do inerente rigor relativo à verificação dos pressupostos e requisitos que, em cada caso, o permitam e sem que os tribunais “exorbitem os seus poderes” na realização da justiça material - cfr. “Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo”, 2.ª edição/2015, da “AAFDL Editora”, fls. 203 a 204.
É que o exercício tal poder jurisdicional, atenta a natureza das leis num Estado de Direito, mais não configura do que a verificação, eventualmente, se necessário, com recurso a peritos da área em questão, da legalidade de concreta actuação, avaliando-se inerentes “justificações” e margens de actuação alternativa, à luz dos princípios e valores consensuais chamados à colacção, mas para lá da relatividade político-administrativa conjuntural, uma vez que em causa sempre estará um princípio fundamental, consagrado até, agora, no artigo 5.º, do Código do Procedimento Administrativo (integrador, como “supra” se aludiu dos “princípios constitucionais da eficiência, da aproximação dos serviços das populações e da desburocratização”).
O referente que se impõe ao poder jurisdicional é, sublinha-se, o controlo da legalidade da actuação da administração subjacente à concreta “margem de livre apreciação”, e na exacta medida em que se trate, especificadamente, de uma questão jurídica aferida a um princípio fundamental, eventualmente violado, e que, deste modo, se estrutura como questão jurídico-administrativa.
Não se trata, aí, de avaliar o espaço de liberdade da administração mas, antes, a boa ou má apreciação por esta das situações de facto que, desde logo em termos de especificidade técnica, dizem respeito aos pressupostos das decisões em causa, e na medida em que as mesmas se possam evidenciar como violadoras, em concreto, do princípio da boa administração (ou outro) e, assim, ilegais ou, no limite, com conteúdo inconstitucional.

Raquel Goldschmidt (N.º 25792)

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