De entre os fundamentos
estruturantes do direito administrativo português, e em vista dos valores
fundamentais que devem reger esta actividade “num Estado de Direito democrático” (cfr. Decreto-Lei n.º 4/2015, de
07.01) emergem os inerentes princípios conformadores (cfr., desde logo, os artigos
3.º a 19.º, do, referenciado, e vigente, CPA/Código do Procedimento
Administrativo) e, entre eles, o da boa administração (cfr. artigo 5.º), tido
este por, nesta matéria, significativa inovação (cfr. preâmbulo daquele
Decreto-Lei n.º 4/2015, de 07.01), aqui se consignando que por ele, em “quadro heterogéneo”, foram integrados “os princípios constitucionais da eficiência,
da aproximação dos serviços das populações e da desburocratização”.
A propósito do concretizar
uma “boa administração”, e neste enquadramento, ressalta a problemática dos
limites desta como eficiência enquanto referencial de possibilidade, ou não, do
controlo jurisdicional da actividade administrativa, em particular quando
aferida a “margem da livre decisão administrativa” (enquanto “espaço de liberdade da actuação
administrativa conferido por lei” implicando “uma pelo menos parcial autodeterminação administrativa”) ao
rigoroso cumprimento do princípio da legalidade, “v.g.” na medida em que se defenda que “o controlo jurisdicional carece de ultrapassar uma metodologia de
controlo da margem de livre decisão que, por assentar demasiado em elementos
vinculados e formais, não é já compatível com a feição actual do ordenamento
jurídico” e que “o direito
administrativo pede, hoje, um cálculo sensato e orientado para a justiça, quer
por parte do administrador, que o faz em primeira linha, quer por parte do
julgador, que o controla” - cfr. “Comentários ao novo Código do
Procedimento Administrativo”, 2.ª edição/2015, da “AAFDL Editora”, página 205.
A equação sempre haverá
que ter em conta a natureza dos actos integradores de uma “boa administração” -
gerais e abstractos -, o princípio da separação de poderes por relação à margem
de liberdade da administração em face do poder jurisdicional, e a avaliação do
caso concreto à luz da finalidade normativa do interesse público prosseguido,
sendo que, sempre, “a base jurídica da
margem da livre decisão administrativa é a lei” - cfr. Sousa, Marcelo
Rebelo de, e Matos, André Salgado de, “in”
Direito Administrativo Geral, Tomo I, 5.ª edição, fls. 183.
Daqui resulta que, mais
do que permitido, se impõe o controlo jurisdicional do teor/conteúdo útil
emergente de decisão administrativa no referente à boa ou má formulação dos
eventuais juízos de prognose e/ou assumir de riscos (não, em rigor, quanto à
concreta decisão), e na medida em que se possam ter formulado (cfr. desde logo
CPTA, artigo 71.º) “valorações próprias” do exercício (discricionário) da “função
administrativa”.
É que consistindo a
“margem de livre apreciação” um “espaço de liberdade da administração na
apreciação de situações de facto que dizem respeito aos pressupostos das suas
decisões” (“in” citado Direito
Administrativo Geral, Tomo I, 5.ª edição, página 195), o concretizar, caso a
caso, do princípio, estruturante, do dever da boa administração mais não parece
significar do que a sua utilização no controlo jurisdicional “stricto sensu” dessa boa ou má
apreciação, e sem que tal seja sinónimo de “dupla administração”.
As fronteiras do controlo
jurisdicional não podem, de resto, querer significar em matéria de separação de
poderes a não juridicidade do dever, enquanto eficiência, de boa administração.
A natureza deste dever
jurídico tem de ser reportada à melhor solução, de entre as possíveis, para o
interesse público, pelo que a sua não observância deverá, sem que se possa
falar de invasão da área de mérito, poder importar invalidade do acto
administrativo (e/ou, na medida em que tal se possa, com realismo técnico, e se
outras soluções se apresentavam como validas alternativas, configurar, tutela
preventiva, e como tal inutilizadora de efeitos previsíveis, ainda que
minimamente, como potencialmente nefastos), para além, pois, de essa não
observância poder ser eventual fundamento de responsabilidade disciplinar, ou
de avaliação de desempenho, e/ou eventual fundamento de responsabilidade civil
da administração perante terceiros, e/ou eventual fundamento de impugnação
administrativa e, por aí, de revogação do acto em causa por motivo de interesse
público, e/ou eventual fundamento de orientação no âmbito dos poderes de
controlo por parte dos órgãos titulares (“v.g.”
o Governo) de direcção, superintendência e eventual tutela de mérito sobre
outros órgãos da administração.
Não se diga, de resto,
que tal não é conforme à “unidade do sistema jurídico” (cfr. Código Civil,
artigo 9.º), pois que: - por um lado, o princípio da boa administração como
eficiência comporta clara injunção dirigida à administração, desse modo devendo
funcionar com o grau de efectividade e de vínculo dos demais princípios
limitadores da margem de livre decisão administrativa; - por outro lado, os
critérios (alegadamente não jurídicos porque de mérito) da boa administração
não relevam para, por exemplo, o acto administrativo de resolução de um
contrato por incumprimento; - e, ainda, porque tal objecção não é aferida, em
sede de variada tutela jurisdicional (cfr. “v.g.”
CPTA, artigo 55.º, n.ºs 1, alíneas b) e e), e 2) à questão da legitimidade processual.
Impõe-se, assim, que o
princípio da boa administração, em termos do controlo jurisdicional, tenha,
para válida conduta administrativa, como referenciais não só a legalidade no
contexto de “vício de excesso de poder”, como a verificação de todos os “vícios”
de violação da lei, devendo ser o objecto desse controlo a actividade
administrativa nas suas diversas formas, sob pena de o “poder público” reservar para si “parcelas cada vez mais significativas de verdadeira imunidade”, sem
prejuízo do inerente rigor relativo à verificação dos pressupostos e requisitos
que, em cada caso, o permitam e sem que os tribunais “exorbitem os seus poderes” na realização da justiça material - cfr.
“Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo”, 2.ª edição/2015,
da “AAFDL Editora”, fls. 203 a 204.
É que o exercício tal
poder jurisdicional, atenta a natureza das leis num Estado de Direito, mais não
configura do que a verificação, eventualmente, se necessário, com recurso a
peritos da área em questão, da legalidade de concreta actuação, avaliando-se
inerentes “justificações” e margens de actuação alternativa, à luz dos
princípios e valores consensuais chamados à colacção, mas para lá da
relatividade político-administrativa conjuntural, uma vez que em causa sempre
estará um princípio fundamental, consagrado até, agora, no artigo 5.º, do Código
do Procedimento Administrativo (integrador, como “supra” se aludiu dos “princípios
constitucionais da eficiência, da aproximação dos serviços das populações e da
desburocratização”).
O referente que se impõe
ao poder jurisdicional é, sublinha-se, o controlo da legalidade da actuação da
administração subjacente à concreta “margem de livre apreciação”, e na exacta
medida em que se trate, especificadamente, de uma questão jurídica aferida a um
princípio fundamental, eventualmente violado, e que, deste modo, se estrutura
como questão jurídico-administrativa.
Não se trata, aí, de
avaliar o espaço de liberdade da administração mas, antes, a boa ou má
apreciação por esta das situações de facto que, desde logo em termos de
especificidade técnica, dizem respeito aos pressupostos das decisões em causa, e
na medida em que as mesmas se possam evidenciar como violadoras, em concreto,
do princípio da boa administração (ou outro) e, assim, ilegais ou, no limite,
com conteúdo inconstitucional.
Raquel Goldschmidt (N.º
25792)